Nota do Editor:
Quando uma adolescente me pedia alguma coisa na escola, era normalmente “o senhor pode arrendondar a minha nota” ou “posso ir ao banheiro” ou “pode parar de pisar no meu pé, por favor” (dar aula sentado foi e ainda é um inferno para mim).
Raramente alguma moça pedia “como eu posso me tornar uma escritora”?
A Maria Angelina foi uma das poucas que não só pediu e pagou, mas fez. Ela escreveu o primeiro conto dos muitos que eu espero que ela escreva. Ela ainda não tem nem 18 anos, mas tem talento. Espero que vocês gostem desse conto de terror assim como eu e o Raul gostamos de revisá-lo.
RHC
1.
Ainda me lembro com clareza do olhar hesitante de meu pai repousando sobre mim, como se quisesse dizer algo e não conseguisse… ou não pudesse. Penso que talvez estivesse se desculpando ou tentando me alertar. Gostaria que ele tivesse falado.
Em novembro de 1945 eu me mudei para Barbacena, mas tudo começou quando a cidade ainda era apenas um nome conhecido e insignificante para mim. Desde que consigo me lembrar, papai sempre foi apaixonado por seu trabalho como médico e esperava que todos o enxergassem com o mesmo entusiasmo. Comentários sobre a fascinante natureza humana e longos discursos sobre as responsabilidades que tinha como sua sucessora faziam parte do meu cotidiano. Mas aos poucos, seu comportamento foi se tornando quase obsessivo. Ele estava constantemente com cara enfiada em livros de anatomia e nos relatórios de seus pacientes; passava a maior parte do dia no hospital e quando estava em casa, ficava trancado no seu escritório.
Costumava pensar que toda essa esquisitice era um preço que papai pagava por estar em contato com a morte, mas à medida que o tempo passou, essa desculpa deixou de ser suficiente. No entanto, eu parecia ser a única que se incomodava com o comportamento dele. Tudo bem que, tirando meu pai, o único outro membro da família que poderia ter uma opinião formada era meu irmão. Mas seu posicionamento nunca foi uma surpresa para mim. Imagino que se meu pai matasse alguém, Antônio se convenceria de que ele estava certo. Ele provou isso no dia que papai anunciou que nos mudaríamos. Enquanto eu fiquei insatisfeita com a decisão repentina e a falta de antecipação, Antônio demonstrou uma resignação irritante.
- Helena, querida, você precisa entender que a proposta de emprego que eu recebi é irrecusável. - disse meu pai, segurando minhas mãos. - Ofereceram um financiamento para a minha pesquisa. Isso é muito importante para mim, meu bem.
Não conseguia entender o motivo dele querer ir para uma cidade interiorana para continuar sua pesquisa, quando teria mais acesso à recursos e tecnologia se continuássemos morando no Rio de Janeiro. Desviei o olhar de seu rosto sem dar a ele a aprovação que queria. Com um suspiro cansado, papai saiu da sala de estar, me deixando sozinha com o meu irmão.
- Pelo amor de Deus, Helena. Você se esforça mesmo para dificultar a vida dele, não é? - estava tão acostumada com a expressão de desgosto no rosto de Antônio, que ela não me incomodou naquele momento.
- Não estou dificultando nada! Só não entendo o porquê de termos que ir para uma cidade que fica longe de tudo o que conhecemos, quando ele poderia muito bem continuar sua pesquisa daqui!
- Ele tem os motivos dele e você não tem o direito de questioná-los. Na verdade, papai deveria te enviar para um colégio interno… ou arranjar um marido para você. Qualquer um dos dois corrigiria esse seu temperamento ruim.
Senti o calor subir por meu pescoço e minha mandíbula se contrair. Para Antônio, ter sentimentos era um sinônimo de impulsividade, descontrole. Era incompreensível para mim que ele fosse médico, quando parecia ter uma repulsa especial pelas pessoas.
- Por que eu deveria me dar o trabalho de agir como o cachorrinho do papai, quando ele já tem você para ocupar esse cargo?
No instante seguinte, ele deixou a sala. Seus movimentos eram ríspidos e os seus passos ecoavam pelo corredor enquanto se afastava. Permiti que meu corpo relaxasse na poltrona. Por algum tempo, eu apenas observei o quadro pendurado na parede: era o retrato de uma mulher esbelta, com longos cabelos negros, olhos azuis vibrantes e um sorriso meigo nos lábios. Se mamãe estivesse aqui, tudo seria melhor. Mas não estava… e a culpa era minha.
2.
Quando pisei em Barbacena pela primeira vez, desejei voltar para o calor aconchegante da minha cidade natal. Encolhi os ombros diante do vento cortante soprando contra as minhas bochechas, intensificado pela chuva fina e incessante da primavera. Além do frio, tudo o que encontrei foi a monotonia e a solidão. Os dias eram cinzas, tristes. E eu que estava acostumada com a agitação contagiante da capital, me perdi em meio à melancolia do interior. Às vezes me pergunto se o clima rigoroso foi o responsável por fazer com que os habitantes da cidade tivessem um bloco de gelo no lugar onde deveria bater um coração.
Ao contrário de mim, papai e Antônio não tiveram problemas para se adaptar ao nosso novo estilo de vida. Geralmente, os dois passavam o dia todo trabalhando e voltavam apenas para o jantar - sem falar nas vezes em que se esqueciam de mim e voltavam apenas quando eu já estava na cama. Eu estava de férias, não tinha amigos e nem a minha família. Portanto, fiquei sozinha dentro de casa nas primeiras semanas, tendo como única companhia a governanta que se dispunha a conversar comigo por pena.
A minha vida estava longe de me agradar, mas naquela época ainda pensava que seria apenas questão de tempo até que me encaixasse na dinâmica da cidade de alguma maneira. Minha convicção começou a perder força quando a dinâmica dentro de casa começou a mudar. A princípio, não havia nada alarmante. Até que um dia, presenciei uma conversa que não deveria ser escutada. Mas no silêncio da noite, acreditando estarem protegidos pelas sombras, meu pai e Antônio se descuidaram.
Já passava das nove horas e eu deveria estar dormindo, no entanto o vento soprava pelos corredores da casa, quase como se estivesse sussurrando um segredo. Eu me levantei da cama para fechar a janela aberta. Andava pelos corredores, seguindo a brisa fresca até a sua origem, quando vi uma luz fraca vinda do escritório do meu pai. Ao me aproximar da porta, vozes abafadas pela madeira pesada alcançaram meus ouvidos. Conseguia entender algumas palavras desconexas, mas era impossível determinar o assunto de sua conversa e a única coisa que poderia afirmar, era que ambos estavam alterados. Nada bom sairia daquela discussão.
- Não pode estar falando sério… desastre… ela… conseguir… - acho que era meu irmão quem estava gritando.
- Minha decisão… intrometer nisso… insolente! - respondeu meu pai.
- Perfil dela… isso é ridículo… vai estragar tudo para variar.
O barulho de vidro sendo estilhaçado fez com que eu me sobressaltasse. Prendi a respiração pelos segundos seguintes, esperando ouvir o que viria em seguida. A resposta que recebi foi o silêncio, que era pior do que qualquer grito que poderia ter escutado. Tive vontade de entrar no escritório para descobrir o que estava acontecendo, mas o meu instinto de autopreservação me impediu. Eu voltei para o meu quarto, implorando para que meu cérebro apagasse aquele evento da minha mente. Naquela noite, todas as tentativas de dormir foram em vão. O vento continuou soprando incansavelmente e eu continuei pensando se o que havia escutado era real.
Nas semanas seguintes, meu irmão convivia comigo apenas quando era necessário: seus olhares eram breves, não havia conversas. Por outro lado, papai parecia cada vez mais interessado em me explicar sobre a sua pesquisa. Era um experimento irrelevante. Ele acreditava fielmente que conseguiria ressuscitar alguém, que logo seria possível alcançar a vida eterna. O sono tomava conta de mim aos poucos quando ele começava os seus monólogos intermináveis. Nunca entenderia a obsessão dele com a imortalidade, quando ainda tinha uma vida inteira para viver hoje. Parecia perda de tempo. Só que todas as vezes em que eu demonstrei algum desinteresse ou dúvida, papai pareceu se descontrolar.
Foi necessária uma única reação para que eu jamais o questionasse. Naquela ocasião, eu havia sido chamada em seu escritório para uma das várias “reuniões” que ele tinha solicitado naquela semana. Era uma quantidade maior, não apenas de vezes nas quais ele tinha falado sobre o seu trabalho; mas de interações. Em uma semana ele havia conversado mais comigo do que nos últimos meses. Seus olhos tinham um brilho indecifrável quando anunciei a minha chegada.
- Faz quinze minutos que te chamei. - disse ele.
- Me desculpe, papai.
- Bem, não faz diferença. Sente-se. - me sentei em uma das cadeiras na sua frente. - O livro que te pedi para ler da última vez, o que achou dele?
- Ah… eu não li. - suas sobrancelhas se uniram diante da minha respostas.
- Como não leu? Faz duas semanas que te emprestei, já era para ter terminado.
- É que eu tinha outras coisas para ler e não pensei que fosse importante que eu…
- Então você não acha importante o que eu faço?
- Não foi isso o que eu disse! Só achei que não fosse urgente ou que tivesse um prazo para ler o…
- Além de sempre me desobedecer, ainda acha que tem liberdade para ridicularizar o meu trabalho? Onde foi que eu errei com você, Helena? Deveria tentar ser um pouco mais como seu irmão. - arregalei meus olhos, chocada com a desproporção de sua reação. - Sei que não teve uma figura feminina na qual se inspirar e sei que deixei você livre por não saber como criar uma menina sozinho, mas não vou tolerar tamanho desrespeito dentro da minha casa! Entendeu? - papai havia praticamente gritado a última parte e os nós de seus dedos estavam brancos por causa da força com a qual apertava a mesa. Balancei a cabeça, sem saber ao certo como deveria reagir. Ele ficou insatisfeito. - Estou falando com você, Helena. Você entendeu?
- Entendi, papai.
- Ótimo. Agora vá para o seu quarto e pelo amor de Deus, leia o livro.
Daquele dia em diante, detestei ainda mais a minha vida naquela casa enorme. Odiava a solidão que sentia, mas preferia ela à presença da minha família. Era como se eu estivesse andando em campo minado quando eles estavam perto de mim, apenas esperando o momento da explosão. E eu estava certa.
3.
Nunca havia sentido tanta tensão em um lugar quanto sentia naquela manhã. Os olhos castanhos rígidos do papai se chocavam contra as orbes azuis frias de Antônio, minha atenção se dividia entre ambos. Pareciam travar uma batalha silenciosa. O café em minha xícara já estava morno e a comida em meu prato estava intocada, porque a ansiedade atrapalhava o meu apetite. Alguns minutos se passaram sem que nenhuma palavra fosse dita. Mas foram necessários segundos para que o ambiente voltasse ao normal - ou ao máximo de normalidade que fosse possível em nossa família.
Antônio continuou negando a minha existência e papai ignorou a de Antônio. O silêncio continuava reinando na sala de estar, o que era melhor do que as conversas forçadas sempre iniciadas por papai. Foi como se meu pensamento se tornasse realidade. No momento seguinte, meu pai permitiu que sua atenção recaísse sobre mim e eu senti vontade de sair correndo para o meu quarto. Levei a xícara à boca, torcendo para que a sensação da bebida forte me desse um pouco de coragem para encarar o homem grisalho.
- A partir de amanhã, você vai começar a trabalhar conosco no hospital. - quase cuspi todo o café diante do anúncio.
- O que?
- Não gosto de ficar repetindo as minhas falas, Helena.
- Por que eu vou ter que trabalhar?
- Você está levando o seu futuro como se fosse uma brincadeira, então a única forma de começar a entender que para ser médica é necessário responsabilidade é se eu te colocar dentro do hospital para que veja o dia a dia. - achei difícil encontrar palavras para formular uma resposta. Mas ela não foi requisitada. Ele continuou falando. - Sem falar que será ótimo para você estar em um ambiente novo, convivendo com pessoas novas. Você é muito jovem para ficar enfurnada nessa casa.
- Mas… eu não quero, papai. Não quero ir. - sua expressão se tornou carrancuda.
- Eu não estou pedindo. Você vai.
- Como eu posso ir para lá? Só vou atrapalhar vocês e as outras pessoas. Seus supervisores vão reclamar da minha presença, e com razão.
- Deixe que com meus supervisores me preocupo eu. Esteja pronta amanhã às sete.
Meu olhar encontrou o do meu irmão, enquanto papai deixava a sala. Duvidava que ele estivesse empolgado com a possibilidade de me ter em seu pé durante o tempo que meu pai determinasse que eu fosse para o hospital. E no entanto, Antônio parecia impassível.
- Eu não quero ir, Antônio.
- Isso é problema seu.
- Isso é um problema nosso. Se eu for, ele vai te mandar ficar tomando conta de mim. Não acredito que queira mesmo ser rebaixado ao posto de babá.
- Pode ter certeza que estou infeliz com a situação. A simples ideia de ter a sua presença irritante impregnando o único lugar no qual consigo encontrar um pouco de paz me dá asco. A diferença é que eu tenho respeito por ele.
- Existe uma diferença entre respeito e obediência cega. E pare de se referir a mim como se eu fosse uma maldita doença!
- É o que você é, Helena. E vai acabar fazendo com ele a mesma coisa que fez com a mamãe.
Senti meu coração afundar em meu peito. Lutava contra as lágrimas teimosas que ameaçavam surgir em meus olhos, a última coisa que precisava era mostrar para o meu irmão que ele havia tocado na ferida certa. Mas Antônio não precisava de nenhuma confirmação. Ele sabia.
- O que aconteceu com ela não foi minha culpa.
- Foi sim. - seus lábios se repuxaram em um sorriso carregado de seu cinismo habitual. - Mas se pensar que não te ajuda a dormir à noite, quem sou eu para impedi-la?
Mais tarde, enquanto estava sentada em minha cama tentando absorver os eventos do dia, o conflito que escutei entre papai e Antônio ecoou em minha mente. Eram apenas partes soltas, que se misturavam com as palavras que meu irmão havia dito hoje. O barulho do vidro se quebrando, o silêncio sepulcral… não foi a lealdade irracional que fez com que Antônio aceitasse a decisão do nosso pai, foi o medo. Ele podia parecer um homem grande e imponente, mas no fundo era apenas um garotinho covarde.
4.
A manhã seguinte estava excepcionalmente fria. Pelo menos estava condizente com o meu humor. Mal tive tempo de comer antes que meu pai me dissesse que estávamos atrasados e me arrancar de casa. Ele parecia quase empolgado com a minha ida. E mais falante que nunca. Por isso, o caminho até o hospital pareceu durar uma eternidade.
Eu mal conseguia absorver todas as informações que papai despejava sobre mim: me distraí no momento em que ele começou a repetir as palavras ‘dever’, ‘responsabilidade’ e ‘gratidão’. A única vantagem de toda a excitação do papai era que ele estava tão ocupado com os próprios pensamentos que sequer se lembrava de mim. Ele não queria um diálogo, queria apenas uma ouvinte para o seu monólogo. E às seis e pouco da manhã de uma terça-feira, não havia ninguém que quisesse falar menos do que eu.
- Querida, vai ser bom para você ter essa experiência. Um dia me agradecerá! Você ainda é muito ingênua e não conhece a natureza humana, por isso estou te fazendo passar por isso. Só vai conseguir ser uma boa médica se for capaz de analisar as pessoas… Pode parecer uma responsabilidade muito grande, e é mesmo, mas é um dever que você é capaz de cumprir. - disse ele. - Eu não vou conseguir te auxiliar o tempo todo, mas seu irmão sempre estará perto de você para caso precise de ajuda. Além do mais, se for uma boa enfermeira, quem sabe eu te deixo participar um pouco do meu experimento…
E então ele parou. Já podia ver o hospital, mas meu pai não se moveu. Enquanto os meus olhos observavam o ambiente ao nosso redor, os dele estavam repousados em meu rosto e por alguns instantes, eu acreditei ter visto o olhar afetuoso com o qual um dia estive acostumada. Esperei uma explicação, mas ele parecia estar em uma espécie de transe.
- Papai?
- Um dia você vai entender que tudo o que eu faço é para o bem da nossa família. Quando for mais velha vai entender…
- Entender o quê?
- Que não podemos estragar tudo, Helena.
Antes que eu pudesse perguntar mais alguma coisa, papai avançou pelos poucos metros que nos separavam do Hospital Regional. A estrutura era antiga - na verdade parecia mais uma casa enorme do que um hospital - mas ainda estava longe de ser o cenário precário e inabitável que eu havia imaginado. As paredes pareciam recém-pintadas, o chão de pedras era perfeitamente alinhado e um jardim bem-cuidado enfeitava a entrada. Não era a modernidade com a qual estava acostumada, no entanto a construção provocava em mim um sentimento de aconchego.
Estava prestando tanta atenção nos arredores que mal notei que meu pai já estava quase na porta. Atravessei o restante do caminho em passos rápidos. De relance, vi uma sombra se erguendo do lado esquerdo da construção. Aquela foi a primeira vez em que vi a casa sem janelas e não seria a última.
Quando entrei, senti o cheiro de desinfetante espalhado pelo ar. A luz passava pelas grandes janelas e esquentavam a recepção, o que fez com que a minha sensação de conforto apenas se confirmasse. Meu pai me mostrou todas as alas do hospital e me explicou como funcionaria meu trabalho enquanto estivesse ali - ele disse que auxiliaria com os pacientes menos graves e que jamais poderia fazer algo sem a supervisão de uma das enfermeiras. Também falou que tentaria estar por perto para me ajudar, mas que provavelmente estaria muito ocupado e que seria Antônio quem estaria à minha disposição. Antes de sair e me deixar com uma das enfermeiras, papai me disse que poderia ir embora a partir das quatros com ou sem ele.
Os outros funcionários estavam muito descontentes com a minha presença e irritados com a minha inexperiência. Honestamente, eu também não ficaria feliz se tivesse que andar por aí com uma adolescente no meu pé. Por isso, eu geralmente ficava responsável pelas tarefas que não precisavam de supervisão, ou seja, limpar os equipamentos e carregar os lençóis sujos. Exceto por um dia na semana.
Toda quinta-feira, quando alguns dos pacientes que estavam se recuperando eram levados para o jardim para um banho de sol, as enfermeiras pediam que eu fizesse companhia para eles. Em especial para os mais velhos. Acredito que elas tinham tanta paciência com eles quanto tinham comigo e por isso me deixavam conversar com eles, já que isso as livraria de dois estorvos. Eu passava a semana inteira esperando por esses momentos. Quem poderia me culpar? Eu não tinha companhia nenhuma! E aqueles idosos também não… então de certa forma, isso fez com que eu desenvolvesse carinho por eles. A maioria deles não conseguia completar uma frase coerente ou escutar o que eu dizia, mas eram muito capazes de me tratar com gentileza. E Deus sabe que essa era a única coisa que precisava.
Entre todos os pacientes, o que eu mais gostava era uma senhora chamada Clara. Ela era uma mulher magra, de pele enrugada e lábios carnudos desproporcionais ao resto do rosto. Seus poucos cabelos brancos, que estavam sempre presos para trás por uma faixa, caíam lisos sobre seus ombros. Não era uma senhora bonita, suas feições poderiam até ser consideradas estranhas. Só que toda a falta de beleza física era compensada por sua alegria enérgica, a qual encantava até mesmo a mais ranzinza das enfermeiras - mesmo que esta jamais fosse admitir.
Em todo o tempo que tínhamos juntas, dona Clara me contava histórias sobre sua juventude e em troca pedia para que eu lesse para elas os meus livros preferidos. O que mais me fez gostar dela, foi o fato de gostar de ouvir falar sobre os meus interesses. Era algo simples, mas que eu nunca tive. Papai apenas se interessava pelo que dizia respeito à medicina, e o meu irmão… bem, ele nunca se interessou por mim.
5.
Os meses passaram rápido e logo minhas aulas começaram. A princípio, pensei em usar a escola como desculpa para ser liberada do trabalho, mas logo o ele se tornou minha salvação. Entrar em um colégio no qual todas as meninas se conhecem desde que nasceram foi terrível - era como se eu fosse um animal para elas, se intrigavam com a minha existência, mas não o suficiente para que chegassem perto. Mas aos poucos elas se mostraram tiranas e toda manhã eu desejava que a tarde chegasse logo, para que enfim pudesse ir para o hospital. Ainda que não fosse o melhor do mundo, o Regional havia se tornado um dos poucos ambientes familiares que tinha. Arrisco a dizer que até mais do que a minha casa, para a qual só ia para dormir.
E então, em uma quinta-feira, as minhas colegas passaram de todos os limites que eu imaginava que a empatia impunha. Poderia parecer apenas uma brincadeira inofensiva para a maioria das pessoas, mas para mim foi o momento mais humilhante da minha vida. Na frente delas me comportei com dignidade e indiferença. No entanto, assim que saí da escola, foi impossível evitar as lágrimas. Coloquei um sorriso no rosto quando entrei no hospital e já me convencia que ninguém repararia em minha tristeza, a última coisa que precisava naquele momento era que as enfermeiras me enxergassem como uma adolescente histérica. Ao chegar no jardim, encontrei dona Clara, que levou alguns segundos para perceber que algo estava me incomodando.
- Senta aqui, minha menina… - disse ela, apontando para o espaço vazio no banco em que estava sentada. - O que fez… cof cof… esses olhinhos ficarem tão tristes?
- A escola é muito ruim, dona Clara. As meninas são más, mesquinhas e distantes. Geralmente eu não me importo de aguentar as piadas com o meu sotaque ou o fato de elas me evitarem, mas hoje elas foram tão cruéis… elas pregaram tachinhas na minha cadeira e eu me sentei. Eu não me machuquei, mas a minha saia rasgou e eu fiquei quase pelada na frente da sala toda. Foi muito humilhante. Tive que ir para enfermaria e esperar que encontrassem outra saia para mim; para piorar tudo, a única que tinha era pelo menos três vezes maior do que o número que eu visto. Fiquei parecendo um balão! Acho que não consigo voltar para lá amanhã. - respirei fundo quando terminei de falar e apenas observei a senhora.
- Não acredito que… cof cof… uma menina tão esperta e bonita esteja se preo… cof cof… cupando com o que um monte de cabeças de vento pensam ou fazem… Elas… - a mulher foi interrompida por um ataque de tosses e eu fiz menção de chamar uma das enfermeiras, mas ela segurou a minha mão. - Estou bem… Elas só repetem o que os… pais falam… mas você, querida… você foi deixada de lado por… tanta gente, que aprendeu a pensar… por isso elas não gostam de você.
- Eu acho que preferia ser uma cabeça de vento. - resmunguei.
- Não diga asneiras… essas pessoas não v… cof cof… valem a pena… essa cidade não vale. E um dia você… cof cof… vai sair e viver uma vida ótima.
Suas palavras ainda voltavam à minha mente mesmo depois de anos. Foi a vida idealizada por dona Clara e a esperança que elas me deram que me ajudaram a sobreviver. Foram elas que me lembraram da minha humanidade, nos momentos em que eu parecia prestar a esquecer de quem eu era.
- Mas agora chega… desse assunto ruim. Você preci… cof cof… terminar de ler o último… capítulo de Drácula.
6.
Mais uma vez, tudo parecia estar entrando nos trilhos e assim como das outras vezes, isso era um sinal de que o trem logo descarrilaria. Havia seis meses que eu estava trabalhando no hospital e estava pronta para admitir que meu pai estava certo em me obrigar a vir. Estava quase começando a enxergar a cidade e seus habitantes com certa clemência. Esse foi o meu maior erro.
Quando se está em uma cidade como Barbacena, baixar a guarda é como se condenar à morte e eu fiz isso com um sorriso no rosto. Por um lado, poderia ter sido mais cuidadosa. Por outro, era inevitável que eu me mostrasse vulnerável. Acabaria condenada pelas pessoas por ser fraca ou por mim mesma, caso fosse desonesta sobre o que eu sentia. Fingir apenas atrasaria o processo… ou poderia ter poupado dona Clara. O fato é que todos naquele hospital sabiam que eu considerava ela uma amiga, assim como todos tinham plena consciência da minha solidão nos outros momentos.
Tinha acabado de entrar no jardim para ajudar em mais um banho de sol. Estava empolgada. Aquele seria o dia em que eu e dona Clara terminaríamos de ler O Médico e o Monstro e eu estava ansiosa para ouvir as suas impressões gerais. No
entanto, não a encontrei quando olhei em volta. Perguntei para uma das enfermeiras se sabia onde ela estava e sua resposta foi que estava fazendo alguns exames, mas que logo ela seria trazida para o jardim. Me sentei em um dos bancos e esperei por ela pacientemente.
Depois de quinze minutos, finalmente vi os cabelos brancos refletindo a luz do sol. Um sorriso tomou conta do meu rosto e eu me levantei para ajudá-la a cobrir o resto do caminho até o banco, só que ao me aproximar percebi que algo estava errado. Seus olhos pareciam distantes, vidrados em algo. Chamei seu nome algumas vezes e ela voltou sua atenção para mim. Ela segurou meu braço com força e eu tentei me desvencilhar com cuidado para não machucá-la, mas ela se recusava a me soltar. E então ela começou a falar.
- Esses… esses olhos… seus olhos… fugir… você tem que… tem que fugir… - sua voz parecia mais fraca do que de costume e ela precisava de pausas maiores para completar suas frases. Me esforçava para entender suas palavras, porque elas pareciam desconexas. Como se ela estivesse apenas expressando seus devaneios. - Eles vão te… p-pegar…
- Ninguém vai me pegar, dona Clara. Está tudo bem, eu te prometo.
- VOCÊ TEM… TEM QUE IR… - ela gritou. - OS… OLHOS… VOCÊ T-TEM QUE… IR…
Eu estava tão atordoada que não havia reparado que o meu livro estava caído no chão, nem que os dedos finos da mulher apertavam meu pulso. Fui arrancada do meu transe quando um homem alto de cabelos negros me empurrou para longe da senhora e mandou uma das enfermeiras me tirar de perto. Fui levada para dentro do hospital, os gritos se tornaram apenas sussurros. Por uma das janelas, pude ver meu irmão tentando acalmar a senhora.
A enfermeira me levou para um dos quartos vazios e pediu que eu me sentasse na cama, meus movimentos eram mecânicos enquanto atendia o seu pedido. Depois, ela disse que não era para eu sair daqui antes que meu irmão viesse me encontrar. Apesar das ordens claras do meu pai de estar sempre a minha disposição, havia visto Antônio com pouca frequência. Eu não queria a ajuda dele e ele não queria ter que me ajudar, então a distância agradava os dois. Ainda estava tentando entender o motivo do surto de dona Clara, já que ela nunca havia demonstrado nenhuma estabilidade. Estava tão concentrada nisso, que sequer pensei em qual seria a reação do meu irmão diante do incidente.
A presença de Antônio parecia tornar a energia do quarto ainda mais pesada. Ele estava bravo comigo, o que não era uma novidade. A novidade era o olhar fulminante e a expressão que denunciava a dificuldade para se controlar. E então ele avançou. Me encolhi, como se dessa forma fosse capaz de me esquivar dele. Nossos rostos agora estavam a centímetros de distância, tão próximos que era capaz de escutar a sua respiração pesada. Pensei em falar alguma coisa, mas as palavras ficaram presas em minha garganta.
- Você sempre tem que estragar tudo, não é Helena? Tudo o que você sabe fazer é causar problemas. Chega a parecer um talento! E esse certamente foi seu recorde, nunca pensei que fosse capaz de fazer alguém ter um ataque de histeria, mas você provou que nada é impossível. - ele riu. Era um som amargo, que fez os pelos de meu braço se eriçarem. - E o pior de tudo é que eu sempre tenho que arrumar as suas bagunças. Sempre.
- Eu não sei o que aconteceu… eu só a cumprimentei, eu juro. Ela nunca tinha feito nada assim.
- Nada nunca é sua culpa, chega a ser engraçado. Existem pessoas como eu, meros mortais e então temos você, a Santa Helena. A menina que nunca faz nada de errado, mas que de alguma forma está sempre envolvida em todos os problemas.
- Para com isso… - minha voz já não tinha firmeza alguma.
- Eu vou parar com isso no dia que você parar de ser um problema na minha vida. - uma de suas mãos segurou meu braço e me puxou para mais perto, meus lábios tremeram. O aperto me machucava, mas tentar me soltar só o deixaria mais irritado. Por isso não me mexi. - Mais uma vez. Se você aprontar mais uma vez, se sequer pensar em me causar problemas… eu vou perder a pouca paciência que ainda me resta. Entendeu?
- Entendi… - sussurrei.
Eu nunca havia temido meu irmão até aquele dia, mas ele também nunca havia encostado em mim. Quando ele saiu, meus olhos desceram hesitantes para o meu braço. Estava vermelho e olhando de perto, era possível ver com nitidez o formato de seus dedos. O pior de tudo é que começava a achar que Antônio estava certo sobre mim. Primeiro a minha mãe, depois a dona Clara. Talvez fosse apenas esperto da parte do resto das pessoas que conviviam comigo manter uma distância, mesmo que apenas emocional. Engoli em seco, enquanto esfregava o braço dolorido para ver se a marca iria suavizar. Não me importava se os funcionários do hospital vissem, mas se isso chegasse aos ouvidos do papai… tinha a impressão de que isso se qualificaria como ‘causar problemas’ para o meu irmão.
7.
Estava entediada. A semana seguinte parecia se prolongar, cada um de seus dias parecia durar bem mais de vinte quatro horas. Eu não estava mais aguentando. Pouco tempo depois do acidente com dona Clara, papai veio conversar comigo e pediu que eu ficasse afastada do hospital durante um tempo. De acordo com ele, esse tempo seria necessário para que eu me recuperasse do choque, porque estando emocionalmente abalada eu poderia desestabilizar outros pacientes. Ele ignorou os meus protestos, também não se deu o trabalho de escutar o que eu tinha a dizer sobre os acontecimentos.
Na verdade, ninguém parecia se importar com o fato de eu apenas ter falado o nome da mulher ou que ela nunca havia reagido mal na minha presença. Tudo o que importava era que ela estava gritando comigo e portanto, eu era a culpada. Mas eu queria saber a razão para ela ter agido daquela maneira e a semana afastada apenas dificultou o processo.
Repassei a conversa que tive com a dona Clara milhares de vezes, para tentar encontrar algum sentido em suas palavras. Ela me mandou fugir… dos meus olhos? Isso parecia impossível. Começava a pensar que talvez a idade tenha começado a afetar o discernimento na minha amiga, afinal ela já era uma senhora. Ainda assim, uma parte de mim insistia que uma pessoa não se torna demente de um dia para o outro. Coisas assim acontecem gradualmente. Pelo menos era o que dizia aquele livro horrível que papai me obrigou a ler.
Mas se ela estava em seu mais perfeito juízo, alguma coisa deve ter acontecido durante os seus exames para a deixar tão assombrada. O tempo em que eu deveria estar descansando só estava me fazendo mal - a dúvida parecia me corroer aos poucos, eu mal conseguia dormir por causa das especulações e da falta de respostas. E para piorar, além de não poder perguntar diretamente para dona Clara ou para algum funcionário do hospital, também não podia perguntar para o meu pai. Todas as vezes em que tentei abordar o assunto, fui repreendida.
Esse assunto estava se tornando uma obsessão. Parecia estar presa no mesmo estado mental do meu pai, no qual ele deposita toda a sua energia em pensar na sua pesquisa. Os sinais dessa fixação começaram a se tornar visíveis, como as minhas olheiras, por exemplo. Elas estavam tão escuras que realçavam o azul dos meus olhos, me deixando com um aspecto doentio. Eu precisava parar.
8.
A primeira coisa que fiz quando voltei para o hospital foi perguntar para a minha supervisora como estava a dona Clara. As suas respostas foram vagas. Então, perguntei se poderia ver ela e a resposta foi um ‘não’ bem firme. Por mais que eu insistisse e afirmasse que não chegaria perto, nem falaria com a senhora; a supervisora não cedeu.
- Prometo que não vou estressar ela. Ver ela pela porta do quarto já é mais do que o suficiente, só quero saber que ela está bem. Por favor.
- O quadro de Clara piorou e ela teve que ser transferida para outra ala do hospital, Helena. Uma na qual a sua presença é proibida. Sem exceções. Seu pai foi bem claro quanto a isso.
- Mas é bem rápido! Eu não vou prestar atenção nos outros pacientes.
- Seu pai não queria você perto dos pacientes mais graves e eu não vou desobedecer ele. Agora volte ao trabalho.
Me distanciei da supervisora já com a intenção de ir procurar meu pai e pedir sua autorização. Estava convencida de que não seria tão difícil persuadi-lo a mudar de ideia, já que o seu maior desejo era que eu me interessasse pela medicina. Mas havia um pequeno empecilho no meu plano: eu não fazia ideia de onde ele estava. Nunca havia dado importância ao fato de não ver meu pai com frequência, porque imaginava que ele sempre estivesse ocupado com outras coisas. No entanto, fiquei incomodada ao perceber que não fazia ideia de onde encontrá-lo caso precisasse.
Já eram quase cinco e meia da tarde, eu deveria estar em casa uma hora dessas, mas estava tão distraída procurando meu pai que não consegui completar as minhas tarefas no horário. Claro que eu poderia ir embora se quisesse, mas havia uma parte de mim que esperava encontrar meu pai ainda hoje. Eu poderia esperar ele em casa, só que ele provavelmente não me daria abertura para fazer o pedido - isso caso aceitasse me ver, porque sempre havia a possibilidade dele se trancar no escritório. Então decidi que iria embora assim que eu terminasse os meus afazeres, mas que até lá eu ainda tinha uma desculpa plausível para estar no hospital.
Eu estava limpando as janelas de um dos corredores, quando finalmente o encontrei. Ele estava do lado de fora do hospital conversando com alguém, mas não conseguia ver o rosto da outra pessoa. Foi então que minha atenção se desviou para a estrutura atrás deles. Era uma casinha esquisita. Era estreita, comprida e muito velha. Mas o mais intrigante sobre ela, era que não tinha janelas. Nenhuma. Papai parecia nervoso enquanto falava: ele gesticulava muito e apontava para a porta da casa a todo momento.
Ainda assim, eu fui atrás dele. Saí pela porta dos fundos, porque estava mais perto. Eu sabia que deveria anunciar a minha presença, porque papai apenas ficaria estressado por ter sido pego de surpresa no meio de uma conversa, mas eu não anunciei. Pelo contrário, tentava fazer o mínimo de barulho possível. Papai estava de costas para mim e seu corpo me impedia de ver a pessoa que o acompanhava. Ele já não falava, nem se mexia. Senti um desconforto se instalar em meu peito enquanto passava pela lateral da casa. Quando finalmente tive coragem de chamar o nome do meu pai, já estava muito próxima a ele.
- Papai.
Ele se virou em minha direção com um movimento brusco. Seus olhos estavam arregalados e me analisavam, como se estivessem procurando alguma coisa. Logo essa apreensão foi substituída por uma severidade que até então só havia sido direcionada ao meu irmão. Inclinei a cabeça um pouco para o lado para ver com quem ele estava conversando, mas não havia ninguém. Abri e fechei a boca algumas vezes, tentando encontrar palavras que não fossem piorar o seu humor. Já não tinha tanta certeza de que ele me deixaria ver a dona Clara.
- O que você está fazendo aqui, Helena? Deveria estar em casa.
- É que eu ainda não tinha terminado de fazer as minhas tarefas, aí pensei que poderia terminar e depois ir embora.
- Não quero você nesse hospital depois das quatro, não interessa que não tenha terminado o que tinha para fazer. Você para o que estiver fazendo e vai embora. Não quero que se repita.
- Não vai. - ele não fala mais nada. - Papai eu estive te procurando hoje mais cedo, porque eu queria te pedir uma coisa. Só que não te encontrei, por isso vim para cá quando vi você.
- O que você quer? - pergunta rispidamente.
- Será que eu posso ver a dona Clara amanhã?
- Ela foi transferida para outra ala.
- Eu sei, mas será que você não pode me acompanhar até lá? Vai ser rápido e eu não vou causar confusão.
- Não, Helena.
- Mas que mal faz? São só alguns minutos.
- Você não vai chegar perto daquela mulher, Helena. Não adianta insistir. - ele esfregou as têmporas. - Eu vou pegar as minhas coisas e nós vamos para casa. Me espera na entrada.
Ele se afastou e desapareceu dentro do hospital. Eu ia obedecer ele. Juro que ia. Mas então ouvi, vindo de dentro da casa sem janelas, um som que parecia ser um murmúrio. Fiquei parada por alguns segundos, querendo confirmar se o que tinha escutado era real ou se era apenas o vento. Nada. Já estava me afastando quando escutei um som mais alto, mais nítido. Parecia uma risada. Não tinha como ser o vento.
Algo sobre aquela casa estava me deixando nervosa. Até onde eu sabia, ela poderia ser apenas um depósito e eu a risada poderia ser apenas fruto da minha imaginação. Deus sabe que não seria uma surpresa se meu cérebro tivesse se fundido, por causa do pouco sono que havia tido nos últimos dias. Mas se fosse apenas um depósito, não teria problema eu entrar para dar uma olhada. Olhei ao redor uma última vez antes de empurrar a porta de metal. A princípio, ela não se mexeu. Então encontrei meu ombro contra ela, a minha pele se arrepiando diante do contato com a superfície fria. A porta se abriu com um ranger, liberando uma lufada de ar quente em meu rosto.
9.
Demorou alguns segundos até que a minha visão se adaptasse à escuridão e eu estendi a mão na frente do meu corpo, receando cada passo que dava para o interior da casa. A única luz presente era a que entrava pela porta. O cheiro forte de podridão invadiu minhas narinas, fazendo meus olhos lacrimejarem. Eu conseguia ouvir a minha respiração trêmula, conseguia ouvir o meu coração batendo furiosamente contra o meu peito, mas não ouvia nenhuma risada. O ar pesado parecia me sufocar. Era quase como se estivesse vivo. Só não sabia se ele tentava me manter na casa ou me expulsar dela.
Então eu ouvi a risada baixa, quase imperceptível. Ao olhar em volta, percebi que havia outra porta no fundo da casa e imaginei que o som tivesse vindo de lá. Caminhei em sua direção, meus movimentos eram hesitantes.
- Eu… eu… disse para… fugir… - uma voz familiar ressoou. Não passava de um sussurro.
- Dona Clara? O que aconteceu? Onde voc…
Antes que tivesse a chance de dizer mais uma palavra, meu corpo foi lançado contra o que parecia ser uma grade de ferro. Uma dor excruciante se espalhou por todos os meus membros. A porta de ferro se fechou com um estrondo. Eu tentava encontrar o meu agressor em meio à escuridão, mas sentia minha cabeça pesada. Mal conseguia manter os meus olhos abertos. Me recostei mais contra a grade, tentando usar ela para me equilibrar.
Ainda tentava recuperar o fôlego quando o meu cabelo foi agarrado. Um grito escapou dos meus lábios e eu tentei me afastar, mas o aperto ficava mais firme a cada tentativa. As lágrimas escorriam pela minha bochecha. Senti um hálito quente contra o meu pescoço e eu estremeci. Não sabia se me preocupava com quem havia me arremessado ou com quem me segurava.
- Você veio morar com a gente? - a voz não passava de um grunhido.
Risadas explodiram pelo lugar. Essas eram estridentes, altas e incessantes. Dedos finos passearam pelo meu pescoço. Parecia impossível que estivesse na presença de seres humanos.
- Por favor… parem com isso… - implorei, sentindo um ardor subir pela minha garganta.
- POR FAVOR… POR FAVOR… - disse outra voz. Mais risadas.
Eu sentia a força se esvaindo do meu corpo. As vozes faziam a minha cabeça latejar, a dor que sentia estava insuportável. Fechei os olhos, tentando me concentrar em uma única coisa. Senti algo quente escorrendo pela minha cabeça e pingando no meu pescoço; foi o cheiro metálico que denunciou que era sangue. No entanto, era difícil dizer se havia me machucado quando fui empurrada contra a grade ou por causa do aperto. Ao tentar me mover, senti como se as minhas costelas estivessem sendo arrancadas do meu tronco.
Foi naquele momento que entendi o aviso de Clara. A silhueta estava coberta pelas sombras, mas seus olhos eram inconfundíveis. Afinal, eram os meus olhos. Aquela presença parecia mais intimidante do que as mãos que me tocavam, pelo simples fato de que ele andava livremente. Minha garganta estava seca, eu estava nauseada e o meu irmão iria me matar. Essa provavelmente era a oportunidade pela qual ele havia esperado durante toda a sua vida. Desejei que a grade não estivesse lá, porque talvez eu tivesse alguma chance de me afastar dele. Mas não tinha. Eu estava vulnerável e a mercê de sua piedade.
Ele havia me prendido, havia me arremessado como se eu não pesasse mais de cinco quilos, havia me observado sendo machucada pelas coisa atrás das grades e se divertiu com isso. E o pior de tudo é que Antônio não parecia perturbado. As lágrimas escorriam pelo meu rosto, eram resultado da mistura de medo e tristeza que sentia. Meu irmão se aproximou de mim até que nossos rostos estivessem próximos e as mãos soltaram o meu cabelo. Virei a cabeça, sem coragem de encará-lo. Com uma delicadeza assustadora, seus dedos acariciaram o meu rosto e eu senti a minha pele queimar diante de seu toque.
- Eu te disse para não arranjar problemas, Helena.
- P-por que… por que está fazendo isso? - minha voz estava esganiçada.
- Eu não estou fazendo nada. Você fez. - eu balancei a cabeça, me negando a acreditar que aquilo estava acontecendo. - Eu disse para o papai que trazer você para trabalhar aqui era uma péssima ideia, mas ele não quis me escutar. Bem, felizmente você conseguiu provar que estava certo.
- Por favor… não me machuca… - chorei.
- Ah não, não precisa se preocupar. Eu não vou fazer nada com você. - um sorriso tomou conta de seus lábios. - Eu só vou assistir.
Antônio me pegou no colo e eu tentei me debater, mas foi um esforço inútil. Ele era muito mais forte que eu. Ainda que não fosse, qualquer movimento fazia com que a dor que eu sentia piorasse. Foram necessários apenas alguns passos até que alcançássemos o que parecia ser outra porta.
Em pouco tempo, estava sentada em uma cadeira com as mãos e pernas presas por uma tira de couro. Meu irmão apertou um interruptor e uma luz branca preencheu o cômodo. Antes de ter coragem de olhar para ele, meus olhos passearam pelo ambiente, buscando uma maneira de sair daquela situação. Já não conseguia parar de chorar e a náusea apenas piorava. Foi ao notar que o chão possuía manchas escarlate que não consegui conter o vômito.
Eu só queria que aquilo passasse logo. No entanto, a expressão de Antônio denunciava que por ele aquela tortura duraria por muito tempo. Não conseguia entender o motivo de ele parecer tão satisfeito. Desesperada, tentei me desvencilhar das tiras de couro.
- Você não vai sair daqui, Helena.
- Eu… eu nunca fiz nada… eu não mereço…
- Exatamente. Você nunca fez nada e ainda assim ele prefere você. Você matou a mamãe, não teve um pingo de gratidão por tudo o que ele fez por você e ainda assim ele te ama mais. - uma risada amarga saiu de seus lábios. - Tudo isso porque você se parece com ela. Droga, eu me tornei médico e ajudei ele com todas as suas pesquisas, mas por algum motivo você é o legado dele.
- Foi você quem matou a mamãe, Antônio! Você tenta colocar a culpa em mim, mas sabe que se não tivesse me deixado sozinha nada daquilo teria acontecido! Se você não tivesse me deixado sozinha perto do lago, eu não teria caído e a mamãe não teria que me salvar! - gritei. - Ele não me ama porque eu sou parecida com ela. Ele me ama porque eu não me pareço com você! Eu nunca quis nada disso! Eu não pedi nada disso! É sua culpa!
Antônio segurou meu rosto e apertou, mas dessa vez eu não desviei o olhar. A única razão para eu estar aqui era porque papai depositava sua confiança em mim. Uma confiança indesejada. Não podia acreditar.
- Você vai ser o legado dele, Helena. Vai ser a primeira cobaia que vai sobreviver. Eu vou fazer questão de te deixar viva por muito, muito tempo.
Ele se afastou de mim e caminhou em direção a porta. Antes de sair Antônio olhou para mim uma última vez e, com o mesmo divertimento no rosto, apagou a luz.
10.
Não sei por quanto tempo fiquei sozinha no escuro. Sei que meus pulsos já estavam em carne viva, por causa das tentativas de me soltar. Meus olhos pareciam inchados e a minha cabeça latejava, havia chorado muito. Não fazia ideia do motivo de Antônio ter saído e qualquer barulho fazia meu coração acelerar.
Foi o barulho da porta se abrindo que fez meus músculos ficarem tensos. Consegui enxergar a silhueta do meu irmão, mas dessa vez ele não estava sozinho. Alguém se movia logo atrás dele. A luz foi acesa. O rosto do meu pai fez com que o alívio corresse por meu corpo. Ele não concordaria com as loucuras do meu irmão. Eu chamei seu nome com a voz embargada e ele se aproximou, seus movimentos eram tranquilos.
- O que foi, meu bem? Por que está chorando? - perguntou.
- Me tira daqui, papai… o Antônio… ele… ele vai me machucar…
- Te machucar? Claro que não! Seu irmão só quer o seu bem, querida.
- Mas ele me empurrou! E eu estou presa… ele não quer me soltar…
- Eu te disse que ela estava nervosa. Coitada. Ela tropeçou, papai. Por sorte eu estava aqui para ajudar ela. - disse meu irmão.
- Não foi o que aconteceu! Ele me machucou e me trouxe para cá! Me deixa sair papai. Por favor…
- Querida, seu irmão te amarrou para o seu bem. Eu estava pensando em esperar um pouco mais e te ajudar a se acostumar com a ideia, mas acho que já está na hora. - foi a resposta do meu pai. - O procedimento pode demorar um pouco e para não correr o risco de você machucar caso se desespere, nós temos que te prender. Mas prometo que vou ser o mais rápido que conseguir.
- O que? O que você vai fazer? Que procedimento? - meu coração parecia estar preso em minha garganta.
- Eu te disse que minha pesquisa iria funcionar, querida. Agora você vai poder viver para sempre e eu não vou ter que te perder do jeito que perdi sua mãe.
Foi o sorriso no rosto do meu pai que me assustou. Ele não parecia estar se divertindo como o meu irmão. Ele parecia acreditar mesmo que eu viveria para sempre. Eu gritei, me debati e papai continuou tentando me acalmar, garantindo que não havia motivo para tanto estresse. As minhas forças pareciam estar se esvaindo, já não conseguia pensar. Meu corpo estava pesado. Observei quando meu pai caminhou até uma mesa de metal em um canto da sala e começou a preparar alguns instrumentos. Pensei que fosse desmaiar. Meus esforços eram inúteis, papai já não conseguia entender o que era certo e o que era errado… o que era real e o que era apenas uma fantasia.
Seu comportamento mudou completamente no instante em que colocou as ferramentas na mão. Cada movimento era calculado, mecânico. Era como se eu fosse apenas um de seus pacientes e ele estivesse seguindo um protocolo. Eu não tinha chance de sair daqui. Eu estava entre a impessoalidade fria do meu pai e o divertimento cruel do meu irmão. Fechei os olhos e desejei que toda a minha vida ali fosse apenas uma invenção da minha imaginação, desejei que quando abrisse os olhos estaria de novo no Rio e que tudo teria voltado ao normal. No entanto, isso não aconteceria. Mesmo que por algum milagre nós nunca tivéssemos nos mudado para Barbacena, meu pai já trilhava um caminho perigoso que o levaria para a loucura e o meu irmão… ele saberia se aproveitar disso.
Não consigo me lembrar do que aconteceu depois, porque tudo parecia um borrão. Lembro de Antônio me sedar e dizer alguma coisa sobre eu finalmente ter alguma utilidade. Lembro também de olhar em volta, já sentindo minha visão ficando turva, em uma última iniciativa desesperada de encontrar uma saída. Também não consigo dizer o que aconteceu depois daquele dia, porque aos poucos eu fui me esquecendo de quem eu era e do que estava fazendo ali.
Esse hospital no Inter de Minas passa uns ares de Casa Verde, do Alienista. Casarões antigos servirem de hospitais e hospícios são uma herança do nosso período colonial. Detalhe interessante pra inserir na história
Não conseguia parar de ler. A tensão da história meu prendeu e li rapidinho. Muito bom.